sexta-feira, 29 de junho de 2018

O REVERSO DA MEDALHA


          Para se compreender o actual fenómeno da imigração para a Europa proveniente essencialmente de África através do Mediterrâneo, há que fazer uma retrospectiva histórica do fenómeno.  Numa primeira fase correspondente ao período dos descobrimentos verificou-se a primeira vaga duma imigração subrepticia ainda envolta noutras realidades mais evidentes como a escravatura e o seu tráfico.  Lisboa e outros portos oceanicos (Veneza, Cadiz, Roterdão, Londres, etc.) eram na época verdadeiros entrepostos de pessoas onde se compravam e se vendiam livremente escravos, embarcadiços ou outros vagabundos segundo a lei do mais forte ou do mais poderoso. Oriundos essencialmente de África, esses imigrantes foram sucessivamente sendo exportados como força de trabalho para as plantações norte e sul-americanas. Alguns ficavam nos países europeus como criados ou servos dos respectivos donos. Não havia nessa época familia que se prezasse que não possuisse um rancho de negros e de negras para a servir e aos seus convidados. Corresponderam estes aos primeiros refugiados chegados à Europa oriundos de África.

          A segunda leva de imigração para a Europa coincide com a abolição da escravatura no decurso do seculo 19. Entregues ao seu próprio destino, os recém libertados escravos tinham que concorrer entre eles e com os brancos desempregados na procura dos trabalhos que lhes permitissem subsistir e às suas familias.  Com o estabelecimento das linhas maritimas regulares entre a Europa e os outros continentes e a generalização do comercio maritimo, muitos ex-escravos chegaram à Europa e às Américas em busca de condições de vida que não encontravam em África. Tambem a abolição da escravatura nos Estados confederados da América do Norte, em Cuba e no Brasil proporcionaram aos mais afoitos a busca de melhores condições de vida na Europa rica e poderosa. Acompanhando os retornados "brasileiros" enriquecidos ou viajando clandestinamente, os novos imigrantes encheram a Europa de mão de obra barata que era explorada pelas novas industrias menos escrupulosas que a revolução industrial iniciada em Inglaterra criara. Constituem estes a nova vaga dos indigentes vagueando sem norte pela Europa.

          Com o inicio das descolonizações iniciadas após Bandung na segunda metade do seculo passado, começou uma nova fase da imigração descontrolada em direcção à Europa do bem-estar.
A concessão da independencia às antigas colónias, maioritariamente detidas por países europeus, mal preparados para assumirem os seus destinos por eles próprios, determinou, passada a euforia natural própria da liberdade, uma fuga macissa de anteriores colonizados em direcção às antigas metrópoles na busca duma melhoria de vida que as independencias dos respectivos países de origem não proporcionaram. Bem pelo contrário. Os novos países saidos da colonização estão hoje mais pobres e mais desorganizados do que anteriormente, apesar de deterem matérias-primas cada vez mais caras e necessárias para a vida das sociedades que os colonizaram. A percepção cada vez maior destas realidades cria no espirito, sobretudo dos jovens que nunca serviram nem nunca foram subjugados, um sentimento de enorme frustração, que os leva a forçar a entrada na Europa na busca dum bem-estar e dum modo de vida que não têm nos seus países mas que adivinham (pela televisão) existir na depauperada Europa.  Aproveitando este filão inesgotável, inescrupulosos traficantes de pessoas têm contribuido para o aumento das vagas de imigrantes (refugiados, fugidos ou simplesmente desesperados) em direcção da Europa, enriquecendo à custa deles e da ingenuidade ou da preversidade de politicos demagogos e populistas para quem tudo é licito (mesmo à custa de vidas humanas) para atingirem os seus ilicitos fins.
          Como acabar com esta praga antes que ela dê cabo de nós?

        ALBINO  ZEFERINO                                                                              29/6/2018
         

quinta-feira, 28 de junho de 2018

BREVE AUTOBIOGRAFIA DO MEU HOMÓNIMO


          Único filho varão (teve uma irmã mais velha e ainda tem uma irmã mais nova) dum casal da burguesia lisboeta, o meu homónimo nasceu a 3 de Junho de 1946 em casa (como era hábito nesse tempo).  De seu pai, espirito livre mas responsável, e de sua mãe, mais conservadora e reservada, o biografado herdou uma personalidade multi-facetada misto dum dogmatismo germanico e de um pudico cosmopolitismo, o que lhe aparentava alguma timidez nas acções e certa reserva na expressão dos sentimentos e que o apontava para uma carreira publica, quiçá mesmo militar.  Seu pai, dado ao mar, não desdenhava que o filho (que estimava e em quem se revia) se tornasse oficial da Marinha seguindo as pisadas do avô (pai do Pai) que fora oficial do Exército no periodo da Guerra mundial e fora gaseado pelos alemães na Flandres. A mãe, porem, ambicionava mais para o rapaz, quiçá mesmo uma carreira internacional no comércio ou nos negócios, tal como tinha sido o pai dela, rico comerciante muito ligado aos ingleses.
       
          Muito cedo ainda (à época os meninos das cidades não iam para a escola antes dos 6 anos) a criancinha foi matriculada no pré-primário (Kindergarten) da recentemente reaberta Escola Alemã de Lisboa (Deutsche Schule Lissabon) onde conheceu meninos da colónia alemã em Lisboa (gente ligada à guerra acabada de terminar). Sua mãe era fluente em alemão (estudara na Alemanha até ao inicio da Guerra) e provinha duma familia meio-inglesa instalada em Portugal desde o liberalismo (dos ingleses da Carnota). Começou assim o meu homónimo a aprender alemão de ouvido (hoje pouco fala já, mas o pouco que diz parece ser dito por um "scholar" de Brandenburgo). Fez a primária na escola alemã e após um ano no Camões (que não deixou marcas) entrou no Colégio Militar onde as admissões obedeciam à época a critérios de selecção muito rigorosos. Aqui aprendeu a obedecer e a marchar a toque de caixa naturalmente, sujeito a regras de disciplina muito apertadas, o que lhe moldou o carácter para o futuro. Conceitos como a solidariedade, a hierarquia (de valores e de pessoas), o destemor, a entrega incondicional, o desembaraço fisico, a obediencia, entre outros valores, foram-lhe incutidos naturalmente e ficaram a fazer parte da sua personalidade diversificada. Já encaminhado para a entrada na Escola Naval, o rapaz decidiu (repentinamente, diz-se que em consequencia dum desgradável incidente disciplinar ocorrido com o seu curso em 1961) passar-se para as Letras e saiu do colégio sem ter terminado o curso colegial completo. Foi fazer o então 7º ano para os jesuitas no Lumiar (ao pé da casa onde morava com seus pais e irmã) na intenção de se matricular no ano seguinte na faculdade de Direito em Lisboa (a única então existente; havia uma outra em Coimbra). Assim aconteceu e anos depois (e muitas noitadas de estudo depois) lá acabou o curso de Direito.  Embora reconhecesse que o curso lhe tinha moldado o carácter (eu diria sem lisonja que lhe completara o carácter formado na austeridade do ensino alemão e forjado na exigente organização do colégio militar onde viveu interno durante os 5 anos da sua adolescência) o meu biografado nunca se identificou com as minudências que uma profissão essencialmente juridica exigia. Animado por um colega que conhecera nos jesuitas e de quem ficara amigo, resolveu (como ele, de resto) concorrer à carreira diplomática e ficou.
       
          Nessa altura namoriscava uma moçoila que conhecera através de amigos e que pacientemente esperava o final do curso dele para se casarem. A rapariga, de boas familias (e de origens fidalgas) e bem educada, foi logo bem aceite pela familia do meu homónimo, sobretudo pela sogra que lhe via qualidades capazes de fazer um bom casamento com o seu filhinho querido (e teve razão; já estão casados há 47 anos). Casaram de facto logo a seguir ao curso e têm uma filha e um filho: dela nasceram duas encantadoras netas e dele um netinho brasileiro. Depois do casamento haveria que encontrar trabalho. Na altura não era tão dificil como hoje e atraves dum colega da Faculdade o biografado conseguiu penetrar directamente nas camaras do poder. O seu primeiro trabalho remunerado pelo Estado foi no gabinete do então poderoso Secretário de Estado da Informação e Turismo, cujo imponente gabinete funcionava no palácio Foz aos Restauradores. O recem-licenciado fora nomeado em Diário do Governo (como se chamava na altura) Secretário do membro do governo de Marcello Caetano (seu antigo professor na Faculdade). Pouco tempo por lá ficou, pois foi chamado para a tropa 6 meses depois. Foi sem pena que saiu do palácio Foz, pois quanto mais cedo se despachasse da tropa mais cedo era chamado para iniciar funções no MNE.

          Cumprido o serviço militar obrigatório (na altura havia a guerra em África), o biografado entrou ao serviço no Ministério dos Negócios Estrangeiros em Outubro de 1974. A sua primeira colocação foi como adjunto do director do serviço de Informação e Imprensa estrangeira, Alfredo Barroso, sobrinho e companheiro politico de Mário Soares, o primeiro MNE após a revolução.  Talvez a breve passagem pelo gabinete do Moreira Baptista tivesse influenciado essa escolha. O ministério fervia de actividade. Era preciso mostrar aos estrangeiros que a revolução de Abril em nada prejudicaria as relações diplomáticas entre Portugal e os outros países. Pelo contrário, dizia-se.  A revolução tinha trazido a liberdade e assim o que era preciso era restabelecer relações cortadas, fortalecer as existentes e iniciar aquelas que nunca tinham existido. Foram abertas novas vagas, a carreira quase duplicou. Começava a politização da diplomacia. De principio todos passaram a ser socialistas de sempre. Os mais velhos (alguns com tachos na censura ou nas listas dos informadores da PIDE ou até com curriculo na Legião) fizeram descobrir aos novos chefes os seus verdadeiros sentimentos face ao regime opressor: perseguição, asco e até vergonha. Os novos (hoje velhos) aproveitaram as portas escancaradas por Soares para invadirem as salas do antigo palácio real. A diplomacia estava a mudar e com ela a carreira tambem. Quem não estivesse de acordo, rua. Muito poucos o fizeram. E mesmo assim, quase todos esses voltaram mais tarde, quais filhos pródigos.
O meu biografado, tal como a maioria dos neófitos, esperava para ver. Alguns porem, mais ansiosos, começaram logo a trepar agarrados às labitas dos velhos convertidos. Outros ainda, passaram-se de armas e bagagens dos partidos recém-criados para a carreira. Anti-fascistas, proclamavam-se em voz alta. Havia que modernizar (democratizar, segundo os menos prosaicos) a carreira.

          Pouco tempo esteve com Alfredo Barroso. O serviço exigia dedicação politica e empenhamento partidário que o meu biografado obviamente não tinha. Logo que descobriu uma vaga num serviço mais tecnico, o meu homónimo para lá pediu para ser transferido. Foi preciso o prestável novo chefe, Pereira de Sousa, interceder junto do Barroso para se conseguir a mudança. Barroso que o tinha convidado pessoalmente ficou ofendido. Ainda hoje não lhe fala. Um ano depois começaram as colocações dos novos adidos no estrangeiro. Ao meu biografado calhou-lhe ser colocado na Embaixada em Madrid. Grande posto diziam amigavelmente os mais invejosos. Foi de facto um posto muito interessante. Coincidente com o cambio espanhol (Franco tinha morrido em Novembro de 1975 e o meu biografado apresentou-se em Madrid em Abril de 76) a embaixada de Portugal era fonte e destino de recados secretos e melindrosos de Madrid para Lisboa e vice-versa.  Foi uma experiencia de tres anos unica e utilissima para a sua formação profissional. O próprio ambiente na embaixada reflectia a confusão que se vivia em Lisboa. Vinham uns partiam outros. Uns mudavam de agulha como de camisa e outros não percebiam o que se estava a passar fosse num ou noutro lado da fronteira. As relações com a crescente emigração portuguesa em Madrid (fugida do PREC) eram erráticas e discretas. Enfim, um pandemónio. Após o assalto à Embaixada de Espanha em Lisboa, as relações com a nossa embaixada esfriaram. Mas logo que apresentadas desculpas e pagos os prejuizos, o interesse espanhol pela forma como decorria a nossa democratização voltou. Queriam evitar (como ocorreu) a excessiva intervenção dos comunistas no processo. Nisto reside a grande diferença entre ambos os processos. Os espanhois conseguiram preservar o sistema económico de mercado, enquanto que em Portugal o governo do Vasco Gonçalves nacionalizava os grandes grupos económicos privados, perseguindo os grandes empresários e acusando-os de crimes económicos. Ainda hoje estamos pagando por isso. Isto só em Portugal.

          Ao fim dos clássicos tres anos (nem mais um dia) o meu biografado foi directamente transferido para Argel (com mulher e dois filhos pequenos um deles nascido já em Madrid). Sem casa em condições, num país hostil e desconhecido foi dificil para o meu biografado e para a sua familia a adaptaçao à nova vida. O embaixador, um bimbo transmontano, pouco percebia o que lá estava a fazer. Os argelinos viam os portugueses da embaixada (os unicos que lá viviam) como os herdeiros dos exilados apoiantes da descolonização que, como Manuel Alegre, Delgado e alguns comunistas fugidos à PIDE, falavam mal de Salazar e do regime do Estado novo, que denegriam. Ao contrário de Madrid (onde todos procuravam saber do pessoal da embaixada as novidades de Lisboa) em Argel ninguem sabia onde se situava Portugal e estavam-se literalmente nas tintas para a politica portuguesa. A Argélia tinha sido reconhecida por Portugal como país independente só depois do 25 de abril, muitos anos depois da própria França. Salazarices que os argelinos não tinham ainda perdoado. Os empreiteiros portugueses que hoje contribuem para a reconstrucção da Argélia ainda não tinham chegado e os contactos com as autoridades só se faziam quando os revolucionários portugueses (Otelo, Charais, Canto e Castro, etc.) por lá apareciam em aviões privados para conversas privadas que não partilhavam com a Embaixada.
Durante a estadia do meu biografado neste país aconteceu apenas um evento digno de nota. Foi quando os bandidos da Frente Polisário resolveram aprisionar um pesqueiro portugues que se aventurara na pesca em águas do Sahará ocidental a coberto do convénio assinado com o Marrocos que reclamava a posse do território (e das suas águas territoriais).  A Argélia dava apoio à Polisário contra os interesses de Marrocos. O aprisionamento do navio portugues servia interesses politicos pois os polisários (argelinos) só libertariam o barco e os 17 pescadores aprisionados se o governo portugues (de Sá Carneiro e do CDS) reconhecesse a nova republica saharui (RASD) contra o interesse dos marroquinos. Chegados a um impasse por recusa do MNE portugues (Freitas do Amaral) em satisfazer essa pretensão e proibindo o embaixador de se meter no assunto, Sá Carneiro envia um emissário seu (Luis Fontoura) para negociar. As conversações duram mais de uma semana sem se chegara acordo (os Polisários não o aceitavam como negociador pois queriam lá o ministro) e foi preciso o homem fingir que voltava para Lisboa sem ter havido negociações (afinal foi para Paris esperar luz verde dos polisários) até que o meu biografado que acompanhou o emissário de Lisboa neste processo ter conseguido que os Polisários o recebessem. Com Fontoura de volta, os homens foram-lhe entregues no deserto e depois repatriados para Lisboa. A aventura tinha terminado a nosso favor.  Um ano depois o meu biografado regressa a Lisboa para ocupar as funções de subchefe do Protocolo. Outra chatice.

          Com a mudança do governo em Portugal (governo Balsemão) Fontoura é chamado para Secretário de Estado da Cooperação e chama o meu biografado para seu chefe de gabinete. A passagem pelo Protocolo tinha sido felizmente fugaz. Esteve cerca de dois anos nessa função onde pode inteirar-se detalhadamente duma área da politica externa da maior importancia politica.  Tendo sido um país colonizador, não fazia sentido que Portugal não tivesse uma politica de cooperação propria que pudesse servir de esteio para o reenquadramento das relações com os novos países independentes de expressão oficial portuguesa. Isso se fez e ainda se vai fazendo. Só que cada vez menos e com menos intensidade. No exercicio deste interessante cargo o meu biografado conheceu Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde e São Tomé, onde se deslocou por várias vezes em serviço do Estado.

          Com a saída do gabinete resultante de nova mudança de governo, o meu biografado foi passar um tempo a Bruxelas para frequentar um curso de formação para diplomatas, na Comissão europeia. Concluido o curso, é nomeado para a embaixada, onde se apresenta em finais de 1984.  O Embaixador com quem vai trabalhar tinha sido seu director geral em Lisboa. De inicio tudo corre bem apesar do feitio imprevisivel do sujeito, até que ele é transferido para Luanda, sendo substituido pelo Secretário-Geral do MNE, António Patricio.  Com este, mais previsivel, as relações tornam-se amigáveis ao ponto do meu biografado ter permanecido no posto até 1990.  Nestas funções o biografado teve oportunidade de participar na apresentação da Europália Portugal, certame bi-anual cultural de nivel europeu e do maior prestigio. O Comissário da exposição foi Rui Vilar de quem ficou amigo.  Durante este periodo o meu biografado foi ainda administrador do Colégio da Europa em Bruges, em representação do Estado portugues.
       
          Ao cabo de seis anos no posto, o biografado regressou a Lisboa e é colocado como director do serviço do Pessoal. Foi uma espécie de sinecura, pois os assuntos que realmente interessavam eram discutidos e decididos pelo ministro em sessões à porta fechada com o todo poderoso director geral da área. Para o meu biografado ficavam as formalizações do que era decidido a alto nivel.  Logo que lhe foi possivel passou-se para o gabinete do então Secretário de Estado das Comunidades portuguesas, simpatico madeirense pouco entrosado nas malandrices diplomáticas de que o ministério é fértil, de quem foi o 4º chefe do gabinete apenas num ano de governo. As eleições seguintes deram origem a um novo governo, o que permitiu que o meu biografado ficasse de novo livre para seguir para o estrangeiro. 
         
          Sendo já ministro plenipotenciário, categoria profissional que lhe permitia aspirar a uma chefia de Embaixada, preferiu porem voltar a Madrid como Consul-geral, função prestigiante mas de pouca importancia profissional. Os seus filhos, já adolescentes e a entrar em breve na universidade, ficariam mais acompanhados desde Madrid do que desde outro local mais distante embora mais interessante profissionalmente. Por terras espanholas se ficou por 4 anos até ter sido nomeado (nas vésperas da presidência portuguesa da UE, única preocupação que assolava as mentes dos diplomatas) embaixador em Harare, no sul da África. O colega que lá estava procurava junto do governo (onde tinha influencias) que o tranferissem para um país europeu, onde poderia brilhar mais.  No ultimo semestre de 1999 (antes de partir para Harare) o meu biografado esteve ainda por tres meses em Macau para preparar com os chineses a cerimónia da entrega do território (handover) na qual desempenhou a função de mestre de cerimónias. Função meramente formal mas de grande importancia para os chineses.
         
          A primeira embaixada do meu biografado correu profissionalmente muito bem, entre a vivência da transformação dum país próspero e dinâmico em mais um dos muitos pardieiros de que a África é fértil, e as sortidas esporádicas à bela selva africana . O Zimbabwe, primeiro produtor de tabaco do mundo e grande exportador de bens alimentares (carne, frutas, legumes, flores, etc, etc.) sobretudo para a UE, tornou-se, graças às politicas de indigenação forçada promovidas por Mugabe, em resultado das alterações da politica africana do novo PM britânico que atingiram em cheio aquela ex-colónia britânica, num grande problema humanitário que ainda hoje não está resolvido.  Como os leitores decerto saberão, ficara decidido no acordo de Lancaster House (entre Thatcher e Mugabe-Nkomo) que deu a independência à então colónia britânica da Rodésia do Sul em 1980, que os britânicos se comprometiam a financiar a reforma agrária no novo país (o que significava que Mugabe recebia dos ingleses dinheiro para manter as rentáveis quintas nas mãos dos proprietários britânicos e não só - até portugueses havia). Com a chegada de Blair ao governo ingles, em 1998, essa remessa financeira acabou (em prol do new deal trabalhista) e Mugabe não esteve com meias medidas; expropriou sem indemnização os colonos brancos (os ingleses que os indemnizassem) tendo ficado com as rendosas farms para ele e para os seus. O resultado foi a degradação acelerada da produção agricola zimbabweana e a transformação dum país próspero num estado falhado como infelizmente muitos são em África. E hoje o Zimbabwe é o que todos sabemos. Um estado falhado e mais um problema humanitário insoluvel.
         
          Com a mudança do governo em Lisboa (em 2002), o novo MNE chamou de Harare o meu biografado para ocupar as funções de chefe do Protocolo do Estado. Função ingrata, trabalhosa e dificil, que durou mais de tres anos. Viajou muito na preparação das visitas de Estado e nas propriamente ditas. Em 2005, foi nomeado embaixador em Berna, onde terminou, em 2010, a sua carreira de 40 anos de serviço exclusivo ao Estado, tendo sido promovido à categoria de Embaixador antes de passar à reforma.

          Hoje é vice-presidente da Sociedade Histórica da Independência de Portugal e vice-presidente da Comissão de relações Internacionais e da Comissão europeia da Sociedade de Geografia de Lisboa.

     
                         ALBINO  ZEFERINO (correspondente diplomático aposentado)

                                                                                                                                 28/6/2018



       
       
       

quarta-feira, 6 de junho de 2018

A NOVA EUROPA


          Com a nomeação dos novos governos de Itália e de Espanha, a Europa está em remodelação profunda. Desaparecidos os antigos partidos que dividiam as sociedades em esquerda e direita e em redor dos quais os governos dos países europeus se iam formando sucessivamente, verifica-se hoje que a dicotomia entre o capitalismo e o estatismo como formas alternativas de condução das sociedades está em crise, tendo dado lugar a governos hibridos cujas composições privilegiam mais a legitimidade da maioria dos votos e menos as ideologias que os sustentam. Dito de outro modo, mais vale contar com apoios que impeçam as quedas imprevistas dos governos do que a coesão ideologica dos mesmos. Ou melhor ainda, às malvas com as promessas eleitorais em prol duma sustentabilidade governativa que permita avançar com acções concretas que desenvolvam as sociedades e as aproximem mais umas das outras. É isto a Europa de hoje. Traçadas as linhas essenciais de conduta das sociedades europeias através dos sucessivos tratados europeus cada vez mais integradores da sociedade europeia em geral, a Europa unida vai ficando progressivamente mais unida mesmo se as frentes anti-europeias colaborem directamente para essa integração. É esta a essência hoje dos governos de coligação que usam a politica europeia como desculpa para as acções menos ideologicas e mais pragmáticas dos seus governos.
           Senão vejamos. Que problemas são hoje os que mais preocupam as sociedades europeias: é a imigração descontrolada vinda do Mediterrâneo ou a manutenção dos minimos indispensáveis para viver? São as condições de vida dos filhos desocupados ou o trabalho precário dos trabalhadores? É a susbsistência do euro como factor de união dos europeus (e do reforço da solidaridade europeia) ou a independência serôdia de algumas regiões europeias? Muitos mais exemplos haveria para citar para constatar que as preocupações dos cidadãos europeus se centram muito mais hoje no seu desenvolvimento global face às pulsões desenvolvimentistas de regiões extra-europeias do que na defesa de ideologias politicas próprias dos romanticos de seculos passados. É, a meu ver, isto que explica o surgimento de governos de geringonça que, inaugurados em Portugal por um europeu pragmático e inescrupuloso, começam a despontar por essa Europa fora assustada com a velocidade com que os acontecimentos empurram os politicos para acções pragmáticas conducentes a uma progressiva união europeia assente mais em causas materiais do que em valores morais e éticos.
          A União europeia é hoje uma realidade insofismável. As esquerdas e as direitas anti-europeias assumiram já esta realidade e só por táctica politica não a reconhecem. Não se procure porem um fim ao processo integrador europeu. A UE está em permanente construcção mesmo se nalguns projectos possa parecer ter parado ou mesmo retrocedido. A vitória sobre a crise de 2008 é a prova disso. Sem as politicas europeias de apoio ao sector bancário (com destaque para o papel activo e preponderante do Reino Unido) e a condução criteriosa e determinada da Alemanha, a UE passou com distinção a sua prova de vida para os próximos tempos. Titubeante é certo, menos veloz para uns e muito depressa para outros, determinada para alguns, confusa e sem projecto consistente para outros, o certo é que está de boa saude e recomenda-se.

               ALBINO  ZEFERINO                                                                        6/6/2018