sábado, 4 de janeiro de 2014

I HAD A DREAM


          Esta noite sonhei. Sonhei que vivia num país livre onde todos faziam bem uns aos outros e ninguem fazia mal a ninguem. Todos se preocupavam com os assuntos verdadeiramente importantes para a comunidade deixando a cada um e à sua iniciativa a gestão da sua própria vida. Ninguem se apropriava do que não fosse seu por direito, nem usava nada alheio em seu proveito próprio que não fosse de uma forma legitima. Em caso de necessidade absoluta o Estado ajudava monitorizando a ajuda. As necessidades colectivas (e só estas) como a recolha do lixo e o seu tratamento, o fornecimento dos cuidados básicos de saude, os bombeiros, os policias e os serviços publicos subsidiados (ex. transportes, ensino especial, investigação de ponta, apoio a idosos necessitados, etc.) eram providenciadas pelo Estado, que se financiava através dos impostos. Estes eram cobrados de forma progressiva (quem mais lucros recebesse mais pagava) e apenas e só em função das necessidades orçamentadas. Ou seja, os impostos aumentavam ou diminuiam consoante estivessem previstas mais ou menos despesas para o Estado suportar em determinado ano (tal como ocorre com a inflação).
          As despesas com as funções de soberania eram limitadas reduzindo-se à manutenção de um corpo de policia, uns quantos juizes seleccionados caso a caso pelo seu carácter impoluto e tropa de parada e diplomatas de circunstancia, consoante as necessidades determinassem (tudo gente contratada à tarefa). Acabavam as regiões autónomas que passariam a governos civis.
          A função legislativa era asegurada por um Parlamento reduzido ao numero minimo de deputados necessários para assegurar a representação de todo o território nacional. Estes funcionavam maioritariamente em comissões fiscalizadoras da acção governativa e em plenários para votações importantes (orçamentos anuais, moções de censura ou de confiança ao governo, declarações de guerra, aprovação de grandes linhas de acção do Estado, referendos parlamentares, etc.).  O Parlamento referendava as nomeações governativas.
          O governo exercia a função executiva, aprovando decretos regulamentares e fazendo portarias, sendo constituido por 6 ministros (o primeiro, com tarefas coordenadoras; o dos assuntos economicos e financeiros, englobando finanças, agricultura, ambiente, comercio e serviços,etc;  o do interior e justiça; o dos assuntos externos, englobando defesa e negócios estrangeiros; o dos assuntos sociais, com tarefas na saude e na escola publicas e na assistencia social; e finalmente o dos transportes e comunicações). Os gabinetes eram reduzidos a um chefe, um adjunto e um secretário e cada ministro tinha direito apenas a uma viatura de serviço com motorista e só para uso em acções de representação (este pessoal era todo eventual e dependia exclusivamente do ministro que os sustentava do seu salário ministerial).
          A função judicial do Estado era exercida por um corpo de juizes propostos pelo governo de entre os licenciados em direito e nomeados pelo Parlamento mediante audição parlamentar prévia em comissão, em função das necessidades do momento (em regime de contrato eventual). Os juizes do Supremo e do Constitucional eram nomeados da mesma forma, com o mesmo regime e por concurso publico. Deixava de existir carreira judicial. O mesmo ocorreria nas demais carreiras chamadas hoje do Estado (militar, diplomática, hospitalar, docente liceal e universitária, etc.).
          Os médicos deixavam de ser funcionários publicos e eram seleccionados para os hospitais pelos respectivos conselhos de gestão. O ensino superior e a investigação cientifica eram privados e desenvolviam-se em função de critérios utilitários. Havia bolsas de estudo para os necessitados (e só para esses) atribuidas pelas empresas que o desejassem (e que disso poderiam tirar óbvio proveito).
          O ensino publico ficava reservado ao Estado que asseguraria escolas publicas em função dos agregados populacionais. Podia concessionar essas escolas a privados mediante concurso. O ensino universitário era privado podendo o Estado manter e gerir as Universidades publicas de referencia, como as de Coimbra e de Lisboa. Todos os professores eram contratados eventuais em função das necessidades lectivas. A investigação e a cultura ficavam entregues ao sector privado.

          Acordei estremunhado com a campainha da porta que não parava de tocar. Aos trambolhões lá fui abrir a porta e deparei com o solicitador de execuções que vinha acompanhado de advogado e dum policia à paisana. Vinham penhorar-me o meu carro que eu deixara estacionado à porta de casa lá em baixo. Falta de pagamento do reembolso e dos juros do empréstimo contraido, disseram. Depois de enfiar uma camisola coçada e uns jeans esburacados lá os acompanhei até ao meu carro novo, que tantas ilusões me trouxera.
          Chegados à rua deparei com uma multa afixada no para-brisas do carro intimando-me a pagar um balurdio por ter estacionado fora do sector autorizado. Meti o papel no bolso antes que os tipos pudessem ver o que era e entreguei-lhes a chave do carro quase em lágrimas. Fiquei a olhar apatetado enquanto via o meu carrinho novo ser levado por aqueles abutres.
          De regresso a casa aproveitei para dar uma olhadela à caixa do correio. No meio dos inumeros flyers publicitários estava uma intimação das Finanças para pagamento de um excesso de IRS que diziam não tinha sido cobrado por engano. Onde iria eu buscar o dinheiro para isso? Subi atabalhoadamente a escada e mesmo antes de entrar no apartamento ouvi o telefone que tocava. Corri para atender e de lá reconheci a voz da minha ex-mulher que, sem sequer me dar os bons dias, me invectivou com maus modos o atraso no pagamento da pensão de alimentos que me esquecera de entregar-lhe no mes passado. Faltava ainda regularizar o pagamento da escola do puto (que ficara por minha conta tambem) lembrava ela antes de desligar abruptamente. E a renda da casa? O senhorio já me tinha ameaçado de despejo se eu voltasse a atrasar-me no pagamento. Tudo junto, se calhar não chegava o ordenado do mês.
          Vesti-me à pressa pois tinha ainda que apanhar o autocarro e depois o metro para chegar ao escritório e com esta coisa do solicitador e do telefonema da gaja já tinha perdido imenso tempo. Chegado ao escritório sou imediatamente abordado pelo meu chefe que me diz estar farto dos meus atrasos e da minha incompetencia (fala o roto ao nu, pensei logo eu) e que iria propor ao patrão a minha saída da empresa. Lindo serviço pensei. Estou lixado. Só me resta emigrar. Entrei na internet e pus-me a procurar trabalho no estarngeiro. Ao fim da manhã já tinha seleccionado 3 hipóteses. Uma em Luanda, outra em Maputo e outra em Sindelfingen, na Alemanha. Talvez comece por esta. Dizem que os alemães gostam muito de nós. Será mesmo assim? Deus queira!

ALBINO ZEFERINO                                            4/1/2014
       

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