domingo, 29 de março de 2020

A DESUNIÃO EUROPEIA


          Desde a chegada do coronavirus à Europa, vindo voluntária ou casualmente da China, conforme o cinismo das interpretações que por aí correm, que o futuro do velho continente como entidade organizada está em risco. A muito propalada solidariedade entre os países europeus, onde a UE assenta os seus próprios fundamentos, tem vindo cada vez mais a ser posta em causa à medida que a pandemia avança, indiferente às tentativas de controle efectivo dos efeitos fatais da doença e dos crescentes estragos que está a causar nas economias do continente e do mundo civilizado.
          Efectivamente, segundo as conclusões do próprio Instituto Gatestone da UE, os estados membros da UE estão instintivamente a regressar à defesa isolada dos respectivos interesses nacionais, no seu combate à epidemia que grassa indistintamente entre eles, em vez de adoptarem estratégias comuns de defesa, como era expectável, face a uma ameaça desta dimensão e profundidade ao continente como um todo. Em semanas recentes, os EM fecharam as suas fronteiras, proibiram as exportações de bens essenciais e suspenderam as ajudas humanitárias, num exercicio inimaginável de egoismo e de pânico incontrolável, face a uma ameaça concreta, iminente e incontrolável, às vidas e aos bens dos seus cidadãos.  O BCE, garante da moeda europeia, tem tratado com inimaginável desdém a terceira maior economia europeia - a Itália - neste singular combate pela vida, e os países mais afectados pela pandemia - a Itália e a Espanha - foram deixados à sua sorte pelos outros EM.  A UE, sete décadas passadas desde a sua criação, ficou paralizada em poucas semanas e em fase de desmembramento iminente, face a este insidioso ataque que a todos aterroriza.
          Enquanto a pandemia alastra pela Europa toda - onde mais de 250 mil pessoas foram, até agora, diagnosticadas como infectadas pelo virus e 15 mil já morreram - os pilares fundamentais constitutivos da União Europeia estão-se desmoronando um por um.  Após criticar durante anos a politica do "America First" do presidente norte-americano Trump, os lideres europeus estão voltando ao nacionalismo de outrora, que tanto verberaram.  O unico soft-power que a UE possuia - a solidariedade multilateral - verificou-se ser uma ficção vazia de conteúdo, face às atitudes nacionalistas demonstradas pelos dirigentes europeus nos ultimos dias. Não existe uma resposta coordenada à crise por parte da UE e as suas recomendações caem em saco roto, face à generalizada crise de confiança instalada nos diversos países europeus.  Num recente artigo publicado na revista alemã " Der Spiegel" lê-se: "Enquanto a pandemia toma conta da Europa, a união velha de décadas mostra a sua fraqueza. Enquanto conseguiu sobreviver ao Brexit e à crise do euro, a crise do coronavirus está transformar-se num desfio insuperável para a UE."
          Como vai ser então agora? Ninguem sabe, mas pode-se especular. Eu diria assim que, passada a pandemia, entraremos todos verdadeiramente no seculo 21, em termos de vida nova, tal como os nossos avós entraram no século 20, só após a Grande Guerra de 1918.  Finda a tragédia, com os estragos em vidas humanas e nas economias contabilizados, o que restar da UE - as instituições, os estados, os governos, as sociedades - terá pela frente a maior e mais extensa e profunda crise económica, social e financeira jamais vivida pelas gerações de hoje. A Europa, como continente velho e civilizado, estará como estava em 1945.  Com fome, desemprego, desorganização social e politica, falta de bens de consumo, produtividades baixissimas, hábitos ancestrais e ideologicamente contaminados, etc etc.  Dos países saídos das várias levas da pandemia, verificar-se-á que uns ficaram menos afectados do que outros.  A divisão entre o norte e o sul dos vários EM acentuar-se-à cada vez mais, em função do nivel das dividas publicas de cada estado. Os estados endividados do sul continuarão empenhados em que o BCE seja autorizado a emitir os famosos euro-bons, para que as suas dividas possam ser financiadas pelos outros estados menos endividados, na senda duma lamuria que se arrasta desde o principio da crise financeira. Os governos dos países do sul (sejam eles quais forem) continuarão a esgrimir os argumentos requentados da solidariedade europeia que usavam antes, embora sem o mesmo ênfase do principio. Os países do norte da Europa, mais ricos, menos endividados, mais organizados e mais produtivos (com maior I&D) continuarão, pelo seu lado, a desprezar arrogantemente esses argumentos, afirmando que quem quer dinheiro, tem que trabalhar mais e melhor. Daqui a concluirem que o euro é uma moeda apenas para os países produtores e com capacidade exportadora é um pulo. A emissão de euro-bonds faria cair o valor do euro e desvalorizaria a produção nacional dos países mais ricos do norte da Europa.
          Chegados a este ponto, os EM do norte da zona euro, criariam formalmente dois grupos de países dentro da UE: o grupo dos países desenvolvidos, produtores de bens exportáveis e portanto criadores de riqueza e fazedores de leis para todos, que continuariam a usar o euro como divisa comum, e o outro grupo dos países, altamente devedores, improdutivos, inadaptados aos novos tempos pós-epidemia, incultos, recalcitrantes e, em suma, atrasados civilizacionamente, que trabalhariam para os outros e usariam moedas locais para comerciarem entre si.  Do primeiro grupo fariam parte a Alemanha, a França, a Dinamarca, a Holanda, os países nordicos e a Noruega, a Suiça e a Austria; o segundo grupo seria composto pela Itália, pela Espanha e por Portugal, pelos países do antigo Leste europeu e pela Grécia.
          Deste modo, a UE deixaria de ser uma união igualitária de estados economica e socialmente desenvolvidos e seguidores de politicas comuns europeias baseadas nos mesmos principios e valores da solidariedade social, da competitividade economica e da igualdade institucional, para se tornar num grupo heterógeneo de estados politico-institucionais, uns mais importantes do que outros, em que as relações entre eles se pautariam por situações de dependência economica ou mesmo politica,  de subordinação às vontades e interesses de uns em desfavor de outros, como acontecia no seculo 19 no Império austro-hungaro, ou mesmo no tempo do Império romano, onde havia os estados romanos, os protectorados e as colónias, ou até quando a Irlanda era colónia da Grã-Bretanha.
          Receio que, se porventura não vier a ser exactamente assim, a nova construção europeia possa vir a ser muito parecida com isto.

                      ALBINO  ZEFERINO                                                         29/3/2020
       
       

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