domingo, 30 de novembro de 2014

A JUDICIALIZAÇÃO DO REGIME


          Os recentes acontecimentos de natureza criminal a que a sociedade portuguesa tem sido exposta e que provocaram um excessivo protagonismo por parte dos juizes nele envolvidos, sugerem um desenvolvimento perigoso para o futuro do regime com a consequente deterioração da sua essencia democrática. O raciocinio em que esta conclusão se baseia é simples: Se as instituições democráticas em que o regime politico assenta (governo, parlamento, presidente) não foram suficientemente capazes de absorver naturalmente e sem sobressaltos os desvios à moral e à ética politicas provocados por inescrupulosos agentes do poder, permitindo (por omissão dos seus deveres de controle ou mesmo por conluio criminoso com os prevaricadores) que os juizes justiceiros interviessem de forma a evitar que os criminosos continuassem a agir impunemente, esta inação (ou acção preversa ou incapaz) legitima reacções, por parte da população despeitada, potencialmente perigosas para o regime e eventualmente violentas para a sociedade.
         Foi para tentar evitar estas situações que se criou uma onda de solidariedade para com o ex-primeiro ministro socialista (encabeçada pelo inefável Soares, velho mas ainda suficientemente desperto para estes fenómenos) materializada nas saloias peregrinações a Évora para onde o energúmeno foi levado (justamente para dificultar estas manifestações de apoio) e permitindo as cartas ameaçadoras e as negações dos crimes por parte do acusado. É que não convém nada ao PS, saído ferido duma feroz e inédita contenda fratricida, aparecer aos olhos dum eleitorado especado por tanta pouca-vergonha, misturar aquilo que é evidente para toda a gente: se não fossem os socialistas não teria havido Sócrates, nem as porcarias e os desmandos que o desavergonhado fez.
         Do mesmo modo se poderá raciocinar com Salgado e com o escandalo do BES. Não fora a deficiente forma (há quem não exclua até o conluio) como as autoridades portuguesas lidaram com este assunto e o caso não teria chegado tão longe. A ganância duma só familia atingiu (espera-se que não tenha sido fatalmente) o regime capitalista em Portugal, recriado pacientemente durante dezenas de anos por denodados agentes, esforçados e audazes. Quem acredita hoje nos bancos? Creio que já nem os que neles trabalham.
         Foi assim que, aproveitando as hesitações e tibiezas dos que deveriam ter agido por obrigação de oficio, os juizes entraram de roldão na casa das pessoas graças às televisões, acusando, interrogando e prendendo os prevaricadores e expondo na praça publica as maldades que fizeram. Já antes com os pedófilos algo de parecido tinha sido feito. Mas aí, a coisa não tocava a todos. Com Sócrates e com Salgado, a coisa toca a todos e portanto toca ao regime.
          O risco que esta judicialização da politica faz correr é o de criar na cabeça das pessoas a convicção de que os politicos não servem para nada. Quando é preciso agir, não agem. Só agem por interesse próprio ou do partido em que se inserem. Ora os juizes não são agentes do poder executivo. Não têm que se substituir ao governo nas suas ausencias ou falhas. Ao governo cabe governar (espera-se que bem e honestamente) vigiando, controlando e fazendo cumprir a lei e acusando (quando for caso disso) os prevaricadores. Aos juizes cabe julgar aqueles que venham acusados de crimes ou de malfeitorias e condená-los ou absolvê-los. Nada mais a democracia lhes exige ou lhes permite. Quando esta divisão de poderes é posta em causa há que agir. E quem deve agir é o mais alto magistrado da Nação. De acordo com a sua consciencia e com a sua sabedoria. Para isso existe e para isso lhe pagam.
          Este fenómeno não é novo. Aconteceu nos anos 80 em Itália com a luta contra a Máfia (o célebre juiz Falcone e outros foram assassinados pelas Brigadas Vermelhas) e mais recentemente em Espanha com o célebre juiz Garzón que decidiu perseguir os franquistas prevaricadores e depois (cheio dos seus sucessos) avançou para a América do Sul atrás de Pinochet e dos generais argentinos. Cedo porém foi afastado, salvando-se de ser assassinado. Por cá a coisa parece estar a começar. O risco não é tanto a saude do juiz Alexandre, mas a descrença na politica que as suas acções (meritórias e corajosas, sem nenhuma duvida) causam nas mentes lhanas dos portugueses. Imagine-se que nas próximas eleições legislativas a abstenção ultrapasse os 50% e que o partido vencedor não atinja a maioria absoluta dos votos expressos. Com que legitimidade governará? Como serão pacificamente aceites os sacrificios que forçosamente terá que continuar a exigir às pessoas? Não sei.

                               ALBINO ZEFERINO                                   30/11/2014

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