“E estranho - que haja quem estranhe a emigração. Nós estamos num
estado comparável somente à Grécia: mesma pobreza, mesma indignidade
política, mesma trapalhada económica, mesmo abaixamento dos
caracteres, mesma decadência de espírito. Nos livros estrangeiros, nas
revistas, quando se quer falar de um país caótico e que pela sua
decadência progressiva poderá vir a ser riscado do mapa da Europa -
citam-se, a par, a Grécia e Portugal. Nós, porém, não possuímos como a
Grécia, além de uma história gloriosa, a honra de ter criado uma
religião, uma literatura de modelo universal, e o museu humano da
beleza da Arte. Apenas nos ufanamos do Sr. Lisboa, barítono, e do Sr.
Vidal, lírico.
El-Rei D. Pedro V tinha lido o livro de E. About A Grécia
contemporânea: e aquele rei que era um grave e fino espírito, e por
vezes um subtil humorista - entretera-se anotando à margem o precioso
livro de About. Onde estavam nomes dos estadistas da
Grécia, o rei punha os nomes correspondentes dos homens públicos de
Portugal; onde vinham as narrações das indignidades políticas de
Atenas, ele lançava à margem as correlativas indignidades políticas de
Lisboa; onde About desenhava com a sua pena maliciosa, cáustica e tão
profundamente francesa, um certo ministro da Fazenda que era ladrão -
D. Pedro V escrevera ao lado: «Cá chama-se o senhor...». Figura no
livro, como torpe, segundo o julgamento do excelente rei, muito homem
hoje célebre na vida pública, com bons ordenados e autoridade. O livro
assim anotado, mudados os nomes -é a descrição mais exacta do estado
de Portugal. Como deve ser infeliz um rei inteligente, quando, caído
em cepticismo e misantropia pela certeza que adquiriu de que está no
meio de uma pocilga política, não pode todavia entregar a Nação à
experiência republicana, nem chamar a si o poder absoluto! Um tal rei,
se não se converte por fastio num bom rei de Yvetot - termina sempre
por morrer cedo.
Ora, na Grécia, o facto permanente é a emigração. E nós emigramos,
pelo mesmo motivo que o Grego emigra - a necessidade de procurar longe
o pão que a Pátria não dá.
O Grego que não tem indústria, nem agricultura, nem comércio,
encontra-se ao entrar na vida sem colocação: - toma então a sua
carabina e vai para as montanhas que Teócrito cantou, roubar viajantes
ingleses, ou embarca no Pireu e emigra para Alexandria, para
Trípolis, para as escalas do Levante, para os estados barbarescos,
para Marselha, para qualquer ponto onde haja algum pão a roer ou
alguma piastra a ganhar.
Nós, que (bem a nosso pesar) não podemos ir roubar para as montanhas
porque não temos a quem roubar - vamos procurar o Sr. Nathan.
E o Governo, a opinião, admiram-se! Mas onde pode a plebe ganhar o
pão? A grande indústria, a dos tabacos, dá 250 réis de salário a um
operário com família. As indústrias fabris são poucas, periclitantes,
com interrupções constantes de trabalho. A indústria mineira está
abandonada à exploração de companhias estrangeiras. A agri-cultura
vive de rotina - empobrecendo a terra e empobrecendo o homem. Não
temos piscicultura, nem silvicultura, nem indústria pecuária. O
trabalhador dos campos vive na miséria, come sardinhas e ervas do
campo: a maior parte anda à malta, trabalhando aos dias, errante de
fazenda em fazenda, por 80 réis diários, nos tempos de salário. A
usura e a agiotagem, unidas, exploram a gente do campo: os tributos
são fortes, as vexações do fisco incessantes. Na província, por um
imposto de 20 e 30 réis, atrasado e relaxado, vimos nós pagar 5 e 6
mil-réis, com custas, etc. Os pobres não tinham a quantia? penhora no
casebre! Nas cidades o operário é vítima do monopólio - monopólio no
pão, no bacalhau, no azeite. Não há entre nós uma escola teórica de
aprendizagem! Que querem os senhores que se faça num país destes?
Sair, fugir, abandoná-lo! O País é belo, sim, de deliciosa paisagem.
Mas a política, a administração, tornaram aqui a vida intolerável.
Seria doce gozá-la, não tendo a honra de lhe pertencer. Só se pode ser
português - sendo-se inglês!”
“(…) O País perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes
estão dissolvidos e os caracteres corrompidos. A prática da vida tem
por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja
desmentido, nem instituição que não seja escarnecida. Ninguém se
respeita. Não existe nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Já se
não crê na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se
progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria.
Os serviços públicos vão abandonados a uma rotina dormente. O desprezo
pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita,
absoluta indiferença de cima a baixo! Todo o viver espiritual,
intelectual, parado. O tédio invadiu as almas. A mocidade arrasta-se,
envelhecida, das mesas das secretarias para as mesas dos cafés. A
ruína económica cresce, cresce, cresce... O comércio definha, A
indústria enfraquece. O salário diminui. A renda diminui. O Estado é
considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um
inimigo.
Neste salve-se quem puder a burguesia proprietária de casas explora o
aluguel. A agiotagem explora o juro.
De resto a ignorância pesa sobre o povo como um nevoeiro. O número das
escolas só por si é dramático. O professor tornou-se um empregado de
eleições. A população dos campos, arruinada, vivendo em casebres
ignóbeis, sustentando-se de sardinha e de ervas, trabalhando só para o
imposto por meio de uma agricultura decadente, leva uma vida de
misérias, entrecortada de penhoras. A intriga política alastra-se por
sobre a sonolência enfastiada do País. Apenas a devoção perturba o
silêncio da opinião, com padre-nossos maquinais.
Não é uma existência, é uma expiação.
E a certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências. Diz-se
por toda a parte: «o País está perdido!» Ninguém se ilude. Diz-se nos
conselhos de ministros e nas estalagens. E que se faz? Atesta-se,
conversando e jogando o voltarete, que de Norte a Sul, no Estado, na
economia, na moral, o País está desorganizado - e pede-se conhaque!
Assim todas as consciências certificam a podridão; mas todos os
temperamentos se dão bem na podridão!
Nós não quisemos ser cúmplices na indiferença universal. E aqui
começamos, sem azedume e sem cólera, a apontar dia por dia o que
poderíamos chamar - o progresso da decadência. Devíamos fazê-lo com a
indignação amarga de panfletários? Com a serenidade experimental de
críticos? Com a jovialidade fina de humoristas?
Não é verdade, leitor de bom senso, que neste momento histórico só há
lugar para o humorismo? Esta decadência tomou-se um hábito, quase um
bem-estar, para muitos uma indústria. Parlamentos, ministérios,
eclesiásticos, políticos, exploradores, estão de pedra e cal na
corrupção. O áspero Veillot não bastaria; Proudhon ou Vacherot seriam
insuficientes. Contra este mundo é necessário ressuscitar as
gargalhadas históricas do tempo de Manuel Mendes Enxúndia. E mais uma
vez se põe a galhofa ao serviço da justiça! “
Portugal 1871
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