terça-feira, 10 de janeiro de 2017

O DESAPARECIMENTO DE MÁRIO SOARES


          Com a morte de Mário Soares aos 92 anos de idade, desaparece mais um importante simbolo do regime em que hoje vivemos e com o qual a maioria dos portugueses se identifica. Sem ter estado directamente envolvido no golpe que deu origem ao actual regime, Soares soube aproveitar a oportunidade que o momento proporcionou para nele se inserir e dele tirar todo o partido por que ansiava há dezenas de anos. Claro está que esta ribalta não foi conseguida sem custos e sem sacrificios. E tambem com coragem. A frustração da perda de amizades antigas, a tristeza da solidão nos momentos dificeis, as duvidas quanto aos caminhos a seguir, os combates contra moinhos de vento teimosos, a sujeição à furia dos desesperados, o combate contra as evidências escondidas, Tudo isto e muito mais mostraram que Mário Soares esteve à altura das suas ambições. Não escondendo as suas limitações, Soares conseguiu manter-se em palco durante quase todo o periodo de duração do regime que personificou. Primeiro como lider do partido mais representativo da nova republica, depois como condutor de governos e de timoneiro esclarecido. Finalmente como simbolo majestático dum país velho de séculos e descobridor de novos mundos.
          Talvez o maior feito de Mário Soares, aquele pelo qual ficará na História deste pequeno e insignificante país à beira mar plantado, tivesse sido o enfrentamento sem tergiversações e com coragem leonina do avanço comunista, que logo despontou nos alvores ainda estonteados duma revolução feita com cravos, tentando puxar para si a condução dum processo ainda confuso e indeciso.
Graças a ele Portugal e os portugueses não se tornaram comunistas federados, como aconteceu com a Cuba de Fidel, ou com os países do Leste europeu durante a guerra fria. Dir-se-à com razão que, sem Eanes e sem Jaime Neves e os seus comandos, Soares nada poderia ter alcançado contra os comunistas de Cunhal, mas o certo é que sem a sua corajosa determinação, o povo ignorante nem teria dado pelo perigoso momento que atravessou. A democracia e os democratas devem-lhe isso.
         Soares era contudo um personagem tipicamente portugues. E tinha orgulho nisso. Gostava de banhos de multidão, embora na intimidade confessasse causarem-lhe enfado. Comia sardinhas com gosto e preferia um carrascão a beber um Bordeaux famoso ou a comer uma deliciosa quiche-lorraine, embora gostasse de presumir junto dos seus, profundos conhecimentos do savoir faire frances. A sua descontração natural, não representando estupidez, levava-o por vezes a cometer gaffes de monta, que nunca o atrapalhavam nem lhe tiravam o sono. Soares era um pandego. Sempre pronto para a brincadeira mas nunca desatento às coisas importantes, o seu faro politico era proverbial e fino. Ficou conhecido por ser um animal politico. Tal como os predadores da selva, atacava com furia e precisão a sua presa e depois não a largava mais. Assim progrediu na politica e assim se tornou no homem que foi. Determinado nos momentos decisivos e descuidado nas coisas insignificantes.
          Muitos portugueses o identificam com a descolonização. Ministro dos Estrangeiros, para aproveitar os seus contactos no exterior no limiar da revolução do 25/4, caiu-lhe a responsabilidade de negociar com os antigos terroristas as descolonizações apressadas pelos militares revolucionários, que desejavam matar rapidamente a causa próxima do seu descontentamento que originara a própria revolução. Aqui Soares não terá tido outro remédio do que seguir as directivas dos militares. Empenhados em que a revolução não descambasse por falta de determinação descolonizadora, o MFA mandou a tropa entregar as armas, escudando-se atrás de Soares a quem encarregaram das falas com os turras. Assim nasceu o opróbio de descolonizador descuidado a Soares. Que foi a sua cara, não há duvida. Mas terá sido o seu coração? Não creio. A descolonização foi um dos fins da revolução (os outros eram a democratização e o desenvolvimento) que não podia ser entregue a outros que não aos próprios militares. Era assunto seu, a guerra tinha sido sua e o fim dela tinha que ser negociado por eles. A Soares não lhe restava senão aceitar o papel de embrulho que terá desmpenhado neste particular. Muitos não lhe perdoam, mesmo aceitando que ele tenha desempenhado apenas esse papel. Mas Soares não poderia ter feito outra coisa. Recusando dar a sua colaboração ao desiderato essencial motivador do golpe, Soares perderia o pé para reclamar fosse o que fosse nos outros objectivos. Como democratizar à europeia (e não à soviética como o PC apregoava e muitos militares revolucionários desejavam)? Como desenvolver o país sem aderir à então CEE (com as suas ajudas de pré-adesão à espera de serem usadas)?
          Mário Soares, mal-criado, às vezes brutal e sem piedade, foi o homem providencial no momento decisivo da nossa viragem. Tudo o resto foi paisagem.

                     ALBINO  ZEFERINO                                                       10/1/2017

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