terça-feira, 31 de janeiro de 2017

O HIATO


          O normal desenvolvimento do mundo aponta para um cada vez maior acesso aos beneficios civilizacionais duma cada vez maior percentagem ou fatia da população em geral. Se ainda hoje a maioria da população mundial vive em estado de carência material, o certo é que, ano a ano, ou melhor, década a década, ou ainda mais nitidamente, século a século, se vai notando um maior acréscimo de pessoas que se vão aproximando de niveis de vida mais desafogados e portanto mais humanos.
Tudo isto à custa da cedência de situações de privilégio de que alguns vão gozando. E não se diga que cada vez os ricos são mais ricos porque, sendo isso verdade, a tendência natural é para uma igualitarização social dos niveis de vida dos humanos em geral. Comparem-se os niveis de vida nos tempos da Idade Média com os do Iluminismo e os do Absolutismo com os do Liberalismo. Quero com isto dizer que o mundo caminha para um socialismo moderado onde todos têm acesso a tudo e obedecem ao mesmo big brother. Um pouco como Orwell nos escrevia no seu 1984, há quase 100 anos atrás.
          Com a queda do ilusório periodo comunista que este ano cumpre os 100 anos, as politicas deixaram de se dividir entre o poder democratico representativo e o chamado poder directo ou popular. Das ditas republicas populares ou democraticas ou populares-democraticas (como Argelia, Angola, Moçambique, Congo, Alemanha do Leste, Venzuela, Bolivia, etc. etc.) só ainda subsistem teimosamente Cuba e a Coreia do Norte, prestes a soçobrar perante a onda liberalizadora que a perestroika e a posterior queda do muro de Berlim representaram. Hoje em dia, só a democracia representativa assente no voto livre e universal contam na politica dos países ditos civilizados. Como cada vez há mais votantes oriundos das classes mais baixas e mais desfavorecidas, verifica-se geralmente que, independentemente do partido ou grupo que vença as eleições, a politica a seguir nunca é selectiva nem centrada numa só linha, mas sim virada para todos e tendencialmente favorável à maioria vencedora. Nos discursos de vitória ouve-se sempre dos candidatos vencedores que serão os lideres de todos e não apenas que governarão só para alguns.
          Desta vez, nos EUA, o candidato vencedor das recentes eleições presidenciais não disse que seria o presidente de todos os norte-americanos. Pelo contrário, acentuou que iria combater as iniquidades sociais dos seus antecessores e que iria promover a grandeza da América assente na riqueza e no desenvolvimento do país, baixando os impostos e investindo em infra-estruturas, onde alguns ricos poderão enriquecer ainda mais. Trump representa assim um hiato, uma paragem no caminho em direcção ao socialismo, que os governos de Clinton e de Obama personificaram. Em Portugal pouco se atentou neste processo esquerdizante dos norte-americanos nas ultimas décadas pós-Reagan (mesmo Bush, pai e filho, pouco fizeram para inverter essa tendência) porque o nosso processo politico, inspirado e dinamizado pelo 25 de abril, não permitiu enxergar com precisão esses movimentos considerados naturais ou normais num processo lento e sistematico de escorregamento à esquerda, realizado durante anos seguidos de administrações democráticas nos EUA.
          E não se diga que esse deslizamento correspondeu à vontade socializante da maioria do povo americano, porque não foi. Bem pelo contrário, a progressiva conquista da maioria do Congresso norte-americano por parte dos republicanos durante o segundo termo de Obama, correspondeu a uma reacção popular contra essa socialização (da qual o Obamacare foi a marca mais visivel) e da qual a vitória presidencial de Trump foi o corolário natural. Com a eleição de Trump os americanos quiseram deixar claro que não desejavam uma governação orweliana para o seu país, embora reajam contra alguns excessos precoces dum presidente troglodita cheio da sua importancia e do poder que lhe foi confiado. Se Trump conseguir chegar ao fim do seu mandato, será recordado como tendo sido um hiato num processo reformador iniciado por Bill Clinton e prosseguido com ardor e demasiado entusiasmo por um Obama convencido que deixaria a Casa Branca em ombros. Não foi assim porque Trump não deixou. No meio de beijinhos e de presentes, não perdeu uma oportunidade para recriminar a obra socializadora do seu predecessor duma forma até agreste e desporporcionada. Obama ficou vexado ao ponto de se ter perfilado para voltar ao poder logo que possivel. A sua pouca idade e a ausencia de candidato democratico ganhador na próxima contenda a isso o animam.
          O hiato que Trump representa poderá contudo constituir uma viragem essencial no processo politico norte-americano. Desde Andrew Jackson, em 1824, que nenhum outro presidente norte-americano tão pouco deveu ao establishment. Trump foi eleito para precisamente reformar essse establishment considerado por muitos (mesmo alguns democraticos) como forma de self-serving way, o que lhe aumenta a liberdade de acção. Por outro lado, a retórica do novo presidente americano de que é necessário voltar a controlar as fronteiras parece ir ao encontro do sentimento de muitos cidadãos não apenas nos EUA mas tambem na Europa. A ameaça do terrorismo joga aqui um papel muito importante no pensamento das pessoas. Por isso aconteceu tambem agora o Brexit e por isso tambem a UE está em crise. Até quando?

                         ALBINO  ZEFERINO                                                31/1/2017

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