A primeira parte da minha vida, correspondente à
minha infancia e á minha adolescencia, passou-se relativamente bem e
portanto bastante depressa. Vivia-se nessa altura em Portugal em
pleno salazarismo e fazendo eu parte de uma familia acomodada, nunca
senti verdadeiramente o peso do Estado na minha vida. Os meus pais
educaram-me bem, como era suposto ser educado naquela época um
rapazinho da classe média, frequentando colégios particulares e
cumprindo os programas de ensino iguais para toda a gente. Em casa
não se falava de politica (isso era deixado para os cerebros que da
politica se ocupavam) e as vicissitudes sociais passavam-me ao lado,
como de todos os que me rodeavam, familia, colegas, vizinhos, amigos,
conhecidos e parentes. Depois de um secundário mediano mas sem faltas
fui para a faculdade, onde pela primeira vez deparei com questões
sociais e politicas (estava-se nos anos 60) que observei de longe, mas
sem nunca me envolver. A contestação juvenil à guerra colonial, o
maio de 68 em França, o caso Delgado, a revolta de Beja, as greves
universitárias, em suma, a generalização da reacção a um regime que
atingia o seu fim, não se me afigurou tão evidente como agora 50 anos
depois surge na nossa história. Só com a morte de Salazar se tornou
mais óbvia a aproximação do fim do regime e a incógnita sobre o que se
iria passar a seguir. Estavamos habituados a tomar conta de nós
próprios e a olhar para o estrangeiro como um estranho a quem se
agradava ou desagradava consoante os nossos próprios interesses. Não
havia que formular estratégias para o relacionamento externo. Tudo
era mais simples e mais óbvio. Apesar de defrontarmos uma guerra sem
solução em tres frentes e 40% do orçamento do Estado estar hipotecado
a esse esforço, pouco se notava nas ruas e na vida do dia a dia.
Porém só poucas pessoas tinham direito a tudo e à maioria cada vez
faltava mais. Até que chegou o 25 de abril e a mudança radical da
sociedade portuguesa. Nessa altura eu, já formado, cumpria serviço
militar obrigatório ao qual não me eximi, nem fugindo para o
estrangeiro, nem fingindo mazelas que felizmente não tinha. Tinha
casado com a minha namorada de sempre e a nossa mais velha tinha
acabado de nascer. Com o fim do serviço militar, casado, com
responsabilidades familiares, mas sem emprego (naquela época um tipo
mediano como eu não tinha qualquer problema em encontrar ocupação
desde que tivesse um curso) resolvi concorrer á carreira diplomática e
entrei. Tinha iniciado a segunda parte da minha vida.
Com a minha entrada no mercado de trabalho e as
responsabilidades familiares entretanto criadas, coincidiu a vivência
sistemática no estrangeiro inerente à profissão que escolhera. Sem
experiencia familiar no sector e ao sabor das vicissitudes politicas,
sociais e económicas que decorriam em Portugal, consequência da
profunda alteração de hábitos,costumes e valores, que o 25 de abril
nos trouxe, fui aprendendo um pouco à minha custa a adaptar-me a uma
nova vida, com exigencias e tarefas desconhecidas para mim, que nos
toma completamente o tempo, o espirito e o modo de viver. Passaram
assim 37 anos a correr. Aprendi assim que não convém dizer sempre
tudo, que nem tudo o que luz é ouro, que os melhores nem sempre
vencem, que nem sempre o que parece é e que a vida tem mais de dubio
do que de certo. Ao mesmo tempo ganhava bem, estava protegido
profissionalmente, tinha apoio social garantido e sentia-me como
fazendo parte de um club de elite numa sociedade que se desconjuntava.
A coisa acabava por compensar. Alem disso, à medida que ia mudando de
actividade (em média cada 2/3 anos) sentia que me ia tornando cada vez
mais objectivo, sobretudo depois de passar alguns anos a viver no
estrangeiro. As coisas e sobretudo os acontecimentos que observava
começavam a significar para mim mais do que simples circunstancias do
momento e mais como fazendo parte de um todo mais geral, que encaixava
na evolução geoestratégica regional e mundial da sociedade em que
vivemos. Foi desta maneira que consegui, sem esforço, situar a
evolução social portuguesa desde o 25 de abril (e até antes) no seu
contexto politico e económico. É assim que percebo a integração
europeia e a defendo como unica via para a solução dos problemas
portugueses. Agora já reformado, com meus filhos casados e com uma
neta, permito-me a mim próprio exprimir aquilo que verdadeiramente
sinto como animal pensante.
Coincidindo com o que chamo a terceira parte da
minha vida (velho à espera da morte) surgiu uma verdadeira hecatombe
que se traduz na situação de descalabro económico em que Portugal se
encontra. Não tendo vivido sistematicamente em Portugal durante os
ultimos 35 anos, esperava que agora, passado tanto tempo e depois dos
portugueses terem partilhado longamente as experiencias e o modo de
vida europeu, eu pudesse tranquilamente fixar-me na terra onde nasci
sem as preocupações próprias de um refugiado, disfrutando duma pensão
de reforma suficiente para manter uma vida digna como a que levei até
aqui, representando com orgulho o meu país no estrangeiro. Mas o que
verifico é que os portugueses nada aprenderam do convivio com gentes
mais evoluidas, estão cada vez mais saloios e ignorantes, mais
aldrabões e vigaristas, com menos escrupulos e mais pouca-vergonha,
mais perguiçosos e velhacos, enfim, merecedores de todas as vilanias
que lhes façam e dignos do país que destruiram leviana e
inconscientemente. Deus tenha piedade de nós.
ALBINO ZEFERINO 28/1/2012
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